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TRANSCENDENDO A DOR DA TRAIÇÃO

O inverno de 1996 foi um dos mais rigorosos que a cidade de São Paulo já enfrentou, e nessa época eu passei uma noite na rua. Sem a devida proteção, sucumbi ao frio e meu corpo veio a falecer.

Antes disso, eu tinha uma família e um lar para morar. Eu era casado há mais de 10 anos com uma esposa que amava desde a adolescência. Nunca tivemos outra pessoa antes de começar nosso relacionamento aos 14 anos. Tínhamos dois filhos lindos, Thiago e Gabriel Antônio. Formávamos uma linda família.

 

Não éramos ricos, mas tínhamos uma vida confortável. Tanto eu quanto a Amelinha éramos formados e trabalhávamos. Os dois trabalhavam de segunda à sexta, com uma rotina puxada, mas reservávamos o final de semana para nós.

 

Todo fim de semana inventávamos algo para fazer com os meninos. Visitávamos familiares e amigos, recebíamos pessoas em casa, íamos para a praia e parques, e eles adoravam.

 

Era tudo muito gostoso e esses momentos nos deixavam muito felizes. Éramos uma família muito unida, somando nossas qualidades e aprendendo a lidar com nossos defeitos.

 

No entanto, certo dia, percebi que minha esposa estava diferente. Estava se arrumando mais para ir ao trabalho, mais cuidadosa com a aparência e com suas roupas. Não que ela não fosse vaidosa, mas estava agindo além do normal.

 

Outra coisa que me chamava a atenção era o fato dela estar trabalhando mais. Voltando mais tarde do trabalho várias vezes por semana. No início não me incomodei, pois ajudava em casa, mas conforme ela foi mudando, passei a desconfiar.

 

Comigo ela não havia mudado praticamente nada. Sempre disposta a me agradar e satisfazer, mas algo havia mudado no seu semblante e nas atitudes.

 

Certo dia, já encucado com tudo isso, resolvi sair do trabalho e ir até o trabalho dela para esperar sua saída. Para minha surpresa, ela saiu no horário certo, mesmo me dizendo que faria horas extras. Isso me deixou suando frio e com o coração acelerado.

 

O pior é que saiu acompanhada de um rapaz bonito e mais jovem. Os dois saíram da empresa brincando e sorrindo. Eu estava do outro lado da rua, aguardando-a, mas resolvi ficar a espreita, sem avisar que estava ali.

 

Os dois foram direto para o estacionamento e saíram de lá no carro do rapaz. Resolvi segui-los e, para minha tristeza, foram direto para um motel a poucas quadras do endereço da empresa.

 

Eu não estava acreditando no que estava vendo. Minha esposa estava me traindo. Meu Deus. Eu estava apavorado, triste, amargurado, suando frio e com o coração extremamente acelerado.

 

Eu poderia ter ido ao encontro deles, entrado em seguida no motel, feito um escândalo, mas eu jamais fui um homem agressivo. Sempre busquei contemporizar situações de conflito e manter a paz no lar.

 

Fiquei do lado de fora aguardando eles saírem. Enquanto isso, chorei muito. Estava extremamente decepcionado com minha esposa, que tanto amava. Pensava como ela teve coragem de fazer isso conosco, com nossa família e principalmente com nossos filhos.

 

Um pouco mais de duas horas depois, eles saíram e foram em direção à nossa casa.

 

A poucas quadras de casa, perto do ponto de ônibus onde ela deveria descer diariamente, ele a deixou. Ela desceu e ele partiu.

 

Percebendo que ela estava indo em direção à nossa casa, acelerei o carro para chegar antes dela. Quando cheguei, os meninos me questionaram porque havia demorado, eu disse que tinha tido alguns problemas no trabalho, que tomaria um banho e logo retornaria para preparar o jantar.

 

Eles ficaram na sala e eu subi para o quarto, a fim de tomar um banho, esfriar a cabeça e me preparar antes da chegada dela.

 

Percebi quando ela entrou feliz e brincando com os meninos como se nada tivesse acontecido. Liguei o chuveiro e fui me banhar, segurando o choro e a tristeza que sentia. Havia acabado de levar uma facada nas costas da pessoa que mais amava na vida e tinha que, naquele momento, conter minha emoção para decidir o que faria.

 

Ela chegou ao quarto e percebendo que eu estava tomando banho, se despiu e veio ao meu encontro. Entrou no banheiro como se nada tivesse acontecido, falando do trabalho e do seu dia.

 

Entrou no chuveiro, me beijou e abraçou, na intenção de demonstrar que estava com muita saudade. Eu correspondi friamente, ao que ela percebeu.

 

Me perguntou se estava tudo bem e eu disse que não. Menti, dizendo que estava com muita dor de cabeça e que alguns problemas do trabalho estavam me atormentando. Ela aceitou minha resposta como se fosse verdade e ainda disse que cuidaria de mim.

 

Na minha mente eu pensava: “como ela consegue agir dessa maneira? Está agindo como se nada tivesse acontecido, e eu, naquele momento, percebi que não a conhecia. Ela poderia estar me enganando há semanas, meses, anos que eu não teria percebido.”

 

Eu fui muito ingênuo, mas não conseguia sentir raiva dela, somente tristeza por ter confiado tanto na pessoa errada. Ela sucumbiu às tentações e às próprias fraquezas e estava ali, diante de mim, agindo como sempre agiu, como se nada tivesse acontecido.

Contudo, agora estava claro que sua felicidade não vinha da nossa união, mas sim do que ela estava vivendo fora do casamento. Não duvido que ela tivesse algum sentimento por mim e principalmente por nossos filhos, sempre foi uma boa mãe, mas decidiu viver outras experiências e aventuras e agora eu havia descoberto.

Até então não sabia o que fazer.

 

No dia seguinte, fui para o trabalho. Era uma manhã fria de um inverno rigoroso que vinha assolando a cidade de São Paulo. Como ainda estava atordoado, todos perceberam que algo havia acontecido. Me perguntaram como eu estava e eu disse para todos que estava bem.

 

Por volta do meio dia, meu supervisor, percebendo que eu não estava em um bom dia, respeitou minha situação e, compreensivo, me deu o resto do dia de folga. Relutei um pouco, mas acabei aceitando.

 

Quando saí do trabalho, não quis ir direto ao estacionamento pegar o carro. Decidi que tomaria uma cerveja para relaxar e refletir antes de ir embora, pois sabia que não poderia enfrentar mais uma noite como a anterior em silêncio.

 

Entrei em um bar um pouco distante da empresa para que ninguém me visse. Sentei bem no fundo e procurei me isolar ao máximo. Pedi uma cerveja e comecei a beber, refletindo sobre o ocorrido e relembrando cada cena em minha mente.

 

Novamente passei a me sentir mal. Meu coração disparou, comecei a suar frio e pedi algo mais forte para beber. Tomei a primeira dose e já pedi outra para deixar ao meu lado.

 

Eu não era de beber em excesso, na verdade sempre fui fraco para bebida. Gostava de beber em casa ou com a família e amigos, por isso, fiquei bêbado rapidamente.

 

Tomei umas 10 doses daquela bebida forte que nem sei o nome. Por volta das 23 horas, o dono do bar disse que fecharia em pouco tempo. Pedi uma saideira e paguei a conta. Depois me despedi e fui em direção ao estacionamento.

 

Estava muito frio e eu havia esquecido minha jaqueta no bar. Pensei: “dá tempo de pegar o carro, voltar ao bar, tomar mais uma e pegar minha jaqueta.” Apertei o passo.

 

Todavia, ao chegar no estacionamento percebi que estava fechado. Ele somente ficava aberto das 6 às 22.

 

Estava tão bêbado que nem liguei. Voltei para o bar na intenção de pegar minha blusa e chamar um táxi. Para minha surpresa, quando cheguei no bar, ele já estava fechado e não havia mais ninguém no local.

 

Fiquei muito bravo e até chutei a porta do bar, que fez um barulho imenso. Olhei para os lados para ver se alguém tinha me visto fazendo isso e saí andando em direção a uma praça.

 

Ainda sob o efeito do álcool, não estava sentindo muito frio. Meu corpo estava quente. Cheguei na praça vazia e sentei em um banco. Comecei a pensar em como iria embora, pois lembrei que minha carteira e documentos ficaram na jaqueta dentro do bar. Por outro lado, não estava com a mínima vontade de voltar para casa e encontrar minha esposa.

 

Sentado no banco da praça, comecei a sentir sono, vi que ninguém estava vindo, deitei para o lado, me encolhi e, extremamente bêbado, achei que fosse melhor passar a noite ali mesmo.

 

Esse foi meu maior erro. Durante aquela noite as temperaturas baixaram demais e foi uma das noites mais frias do ano. Dormindo, desamparado e descoberto, meu corpo não suportou a friagem e faleci. Minha vida findou enquanto dormia embriagado em um banco de praça desolado e devastado pela dor da traição.

 

Ninguém sabia onde eu estava. Minha esposa estava muito preocupada em casa, pois jamais havia feito algo parecido. Sumir ou demorar demais sem avisar.

 

Ligou na empresa várias vezes, mas como já era tarde, não tinha mais ninguém para atender. No meio da madrugada acionou a polícia militar que, na expectativa de que eu estivesse na farra por aí, pediu para que retornasse ao amanhecer, caso eu não tivesse aparecido.

 

No entanto, foi a própria polícia militar que entrou em contato com a minha esposa, que nem havia ido trabalhar, preocupada. Por volta das 10 horas da manhã, o próprio dono do bar que havia retornado para reabri-lo me encontrou morto de frio no banco da praça e chamou a polícia.

 

Eles constataram que eu estava morto, encontraram meus documentos na jaqueta junto com meu crachá da empresa, descobriram meu endereço e foram dar a triste notícia para minha esposa.

 

Deram a notícia de forma fria e sem compaixão, acreditando que eu fosse um pai ou marido bêbado que não havia voltado para casa para ficar se embriagando em um bar. Sob esse julgamento dos policiais, fui removido para o IML mais próximo.

 

O sofrimento dos meus filhos e até da minha esposa foi terrível. Reconheceram meu corpo, velaram e o enterraram, sem ideia do que havia acontecido. Na verdade, até hoje não sabem, e já fazem quase 30 anos que desencarnei dessa maneira.

 

Eu era jovem, tinha apenas 26 anos. Não tinha familiares conhecidos e próximos desencarnados. Até meus avós paternos e maternos estavam vivos e todos sofreram demais. No mesmo dia da minha morte, alguns socorristas e amigos espirituais vieram ao meu encontro.

 

Desligaram meu espírito inconsciente e entorpecido pela essência do álcool do meu corpo e me levaram para um pronto-socorro espiritual.

 

Depois de algumas semanas sob cuidados e com tratamentos, despertei. No início achei que estava em um hospital, mas logo tomei ciência de tudo.

 

Para falar a verdade, eu não fiquei mal. A dor que eu sentia em relação à traição era tão grande que talvez eu realmente quisesse estar morto. Senti e ainda sinto muita saudade dos meus filhos e também da minha esposa, mas sinto que a morte foi o melhor que aconteceu. Amava tanto aquela mulher que não sei como viveria sem ela ou com aquela situação.

 

Ninguém sabe o que eu sei. Ela nem imagina. Acabou depois de um tempo se casando com o rapaz que se deu muito bem com meus filhos, mas em pouco tempo também se separaram e pelas últimas notícias que tive, ela estava sozinha há muito tempo.

 

Jamais voltei para visitá-los, não por raiva ou ressentimento, sentimentos que jamais alimentei, mas por não me sentir preparado e com medo, pois sei que essa visita tiraria o meu equilíbrio e me faria reviver tudo novamente.

 

Sei que logo ela estará de volta à pátria espiritual e estou me preparando para recebê-la bem. Preciso cuidar dela. Ela tomará conhecimento de tudo que descobri, mas não quero que ela pense que a odeio, muito pelo contrário, ainda a amo muito.

Hoje resolvi e tive a permissão de dar o meu relato, para deixar uma lição sobre o amor e o perdão. Meu espírito foi prontamente resgatado e hoje estou bem porque jamais nutri sentimentos que pudessem escurecer o meu ser ou tirar o meu equilíbrio. Sempre tive muito carinho por ela e procuro alimentar os meus sentimentos puros e sublimes com as boas memórias que criamos juntos, seja somente nós dois como no início ou já com nossos filhos amados.

Tive total consciência do erro dela e de tudo que ela aprontou. Não foi somente uma traição, mas nada disso me fez deixar de amá-la. Entendo perfeitamente que somos imperfeitos e que cometeremos erros. Impedir o outro de errar é tirar dele a oportunidade de aprendizado.

 

Não devemos impedir, mas sim orientar para que tenham conhecimento e força para lutar contra aquilo que são. Eu nunca a trai, mas cometi meus erros. Me arrependo de algumas coisas, mas jamais de amá-la como a amei.

 

Que todos possam refletir sobre suas escolhas e atitudes, pois ninguém tem ideia dos desdobramentos dos nossos atos, sejam acertos ou equívocos, sabendo que a vida é uma sequência de atos que nos levam ao nosso destino. Para onde os seus estão te levando?

 

NAVEGANTES DA ESPIRITUALIDADE

 

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